Eu disse num capítulo anterior que existem quatro virtudes "cardeais" e três "teológicas". As virtudes teológicas são a fé, a esperança e a caridade. Trataremos da fé nos últimos dois capítulos. A caridade foi exposta parcialmente no Capítulo 7, em que tratei sobretudo daquela parte dela que se chama perdão. Quero acrescentar agora mais algumas palavras.
Em primeiro lugar, quanto ao significado da palavra. "Caridade" hoje significa simplesmente o que antes se chamava "esmola" — ou seja, o que damos para os pobres. Originalmente, seu significado era muito mais amplo. (Você vai entender por que ela ganhou essa acepção moderna: se uma pessoa é "caridosa", dar esmolas aos pobres é uma das coisas mais óbvias que ela faz, e, assim, as pessoas passaram a dar a esse ato o nome da própria virtude. A mesma coisa aconteceu com a poesia, cuja expressão mais óbvia é a rima. Ora, para a maioria das pessoas, hoje, a "rima" é a própria poesia.) A caridade significa "amor no sentido cristão". Mas o amor no sentido cristão não é uma emoção. Não é um estado do sentimento, mas da vontade: aquele estado da vontade que temos naturalmente com a nossa pessoa, mas devemos aprender a ter com as outras pessoas.
No capítulo sobre o perdão, observei que o amor que temos por nós mesmos não implica simpatia por nós mesmos. Significa que queremos nosso próprio bem. Do mesmo modo, o amor cristão (ou caridade) em relação ao próximo é bem diferente da afinidade ou da afeição. Nós temos "afinidade" ou "afeição" em relação a algumas pessoas, mas não a outras. E importante entender que essa "afinidade" ou "gosto" não é nem um pecado nem uma virtude, como tampouco o são nossas preferências pessoais de alimentação. É somente um fato. É claro, porém, que nossas atitudes em relação a esses gostos podem ser pecaminosas ou virtuosas.
A afeição natural pelas pessoas torna mais fácil a "caridade" com elas. Por isso, normalmente temos o dever de estimular nossas afeições — de gostar dos outros tanto quanto pudermos (da mesma maneira que, em geral, temos o dever de estimular em nós o gosto pelo exercício físico ou por alimentos saudáveis) - não por ser em si
esse gostar a virtude da caridade, mas por nos ajudar a alcançar esse fim. Por outro lado, é necessário tomar muitíssimo cuidado para que nosso afeto por alguém não nos torne pouco caridosos, ou até mesmo injustos, com outra pessoa. Existem inclusive casos em que nossas escolhas afetivas entram em conflito com a caridade em relação à própria pessoa de quem gostamos. Uma mãe extremosa, por exemplo, por causa de sua afeição natural, pode ser tentada a "mimar" o filho; ou seja, a dar vazão a seus impulsos afetivos à custa da verdadeira felicidade da criança mais tarde.
Normalmente, a afeição natural deve ser encorajada. No entanto, seria um erro pensar que o caminho para se obter a caridade consiste em sentar-se e tentar fabricar bons sentimentos. Certas pessoas são "frias" por temperamento; isso pode ser um azar para elas, mas é tão pecaminoso quanto ter problemas de digestão — ou seja, não é pecado. Isso não lhes tira a oportunidade nem as exime do dever de aprender a caridade. A regra comum a todos nós é perfeitamente simples. Não perca tempo perguntando-se se você "ama" o próximo ou não; aja como se amasse. Assim que colocamos isso em prática, descobrimos um dos maiores segredos. Quando você se comporta como se tivesse amor por alguém, logo começa a gostar dessa pessoa. Quando faz mal a alguém de quem não gosta, passa a desgostar ainda mais dessa pessoa. Já se, por outro lado, lhe fizer um bem,
verá que a aversão diminui. Existe, porém, uma exceção a essa regra. Se você lhe fizer um bem, não para agradar a Deus e obedecer à lei da caridade, mas para lhe mostrar como você é uma pessoa capaz de perdoar, para lhe deixar em dívida e para sentar-se à espera de manifestações de "gratidão", provavelmente vai decepcionar-se. (As pessoas não são bobas: elas têm um olho clínico para todas as formas de exibicionismo ou condescendência paternalista.) Sempre, porém, que fizermos o bem ao próximo por ser ele um "eu" igual a nós, criado por Deus, que deseja sua própria felicidade como nós desejamos a nossa, teremos aprendido a amá-lo um pouco mais ou, no mínimo, a desgostar dele um pouco menos. Conseqüentemente, apesar de a caridade cristã parecer fria para as pessoas cujas cabeças estão cheias de sentimentalismo, e apesar de ser bem diferente da afeição, ela nos conduz a este sentimento. A diferença entre um cristão e um ímpio não é que este tem afeições e gostos pessoais ao passo que o cristão só tem a "caridade".
O ímpio trata bem certas pessoas porque "gosta" delas; o cristão, tentando tratar a todos com bondade, tende a gostar de um número cada vez maior de pessoas no decorrer do tempo — inclusive de pessoas de quem ele não poderia imaginar que um dia fosse gostar.
A mesma lei espiritual funciona de maneira terrível no sentido oposto. Pode ser que os alemães, de início, maltratassem os judeus porque os odiassem; depois, passaram a odiá-los ainda mais por tê-los maltratado. Quanto mais cruel você é, mais ódio você terá; quanto mais ódio tiver, mais cruel será - e assim para sempre, num círculo vicioso perpétuo.
O Bem e o Mal aumentam ambos à velocidade dos juros compostos. E por isso que as pequenas decisões que eu ou você tomamos todos os dias têm tanta importância. O menor gesto de bondade feito hoje garante a conquista de um ponto estratégico a partir do qual, em alguns meses, você poderá alcançar vitórias nunca sonhadas. Já uma concessão aparentemente trivial à luxúria ou à ira significa a perda de uma colina, de uma linha férrea ou de uma cabeça de ponte a partir das quais o inimigo poderá lançar um ataque que, de outro modo, seria inviável.
Alguns escritores usam a palavra "caridade" para designar não somente o amor cristão entre seres humanos, mas também o amor de Deus pelo homem e o amor do homem por Deus. As pessoas costumam preocupar-se mais com este último. Ouviram dizer que devem amar a Deus, mas elas não encontram esse amor dentro de si.
O que devem fazer? A resposta é a mesma de antes. Aja como se você amasse. Não fique sentado tentando fabricar esse sentimento. Pergunte a si mesmo: "Se estivesse certo de que amasse a Deus, o que eu faria?" Quando encontrar a resposta, vá e faça.
No geral, o amor de Deus por nós é um tema muito mais seguro que o nosso amor por ele. Ninguém consegue ter sempre o sentimento de devoção: e, mesmo que conseguisse, não são os sentimentos que mais importam a Deus. O amor cristão, seja para com Deus, seja para com os homens, é um assunto da vontade. Se nos esforçamos para obedecer à sua vontade, estamos cumprindo o mandamento "Amarás o Senhor teu Deus". Ele nos dará o sentimento do amor se assim desejar. Não podemos criá-lo por nós mesmos nem podemos exigi-lo como se fosse um direito nosso. Porém, a grande coisa a se lembrar é que, apesar de nossos sentimentos irem e virem, o amor dele por nós não se altera. Não se desgasta por causa dos nossos pecados nem por nossa indiferença. Logo, é inflexível em sua determinação de que seremos curados desses pecados custe o que custar, seja para nós, seja para ele.
Trecho do Livro: CRISTIANISMO PURO E SIMPLES (C.S.LEWIS)
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